quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Discos com Graça: Olhos de Mongol

Descomprometidos com o mundo, erguem-se em complexidades instrumentais capazes de nos preencher, centímetro a centímetro, milímetro a milímetro, a alma.

Olhos de Mongol trata-se de um disco extremamente coeso e penetrante, onde a sonoridade ganha asas e não desce dos céus e onde o lirismo, sempre simples e eficaz, funde-se com a complexidade instrumental e penetra-se pela nossa cabeça sem querer retornar à esfera real.

Com músicas absolutamente divinais, o quarteto edificou, indubitavelmente, um álbum [extremamente] rico em sonoridade, poesia e talento.

Olhos de Mongol obriga-nos a voltar a Outubro de 2006 [um ano depois de a banda ter lançado o seu primeiro EP, intitulado Linda Martini], e é constituído por 9 faixas com um total de, aproximadamente, 42 minutos. Tendo como editora a Naked, o álbum conta com:
1.       Sinto a cabeça a cair – Esta é a música mais simples de todo o LP, funcionando como uma introdução ao mesmo. Apesar de toda a sua simplicidade, é a partir do momento que escutamos esta faixa que começamos a ganhar consciência de que este Olhos de Mongol deve ser escutado atentamente, pois trata-se de um escape à esfera real. Começo razoável e intrigante.
2.       Cronófago – A partir da segunda faixa do registo são-nos introduzidas as poderosas guitarras com que o quarteto cessa a sua fome. Edifica-se, ao longo do tema, uma muralha de distorção soberba que, aliada a uma atmosfera potente, prende o ouvinte no verso «São carris que me prendem aqui/ à velha casa onde tudo é igual». Obrigando o ouvinte a deambular-se pelos vocativos empregues, salta-nos o desejo de querer esmiuçar o mesmo. Nesse «passeio» em torno do verso, ergue-se-nos a ideia dos conceitos de rotina, homogenia e igualdade [conceitos, esses, que nos persistirão até ao fim do LP]. Potente.
3.       Dá-me a tua melhor faca – Esta música é, simplesmente, demolidora. Nascendo no seio do poderio instrumental [com ênfase para as guitarras], um personagem aparece-nos abafado pela dor e, por isso, mudo. À medida que o quarteto se alimenta do seu som, a música, inicialmente ultra-violenta, vai desaguando numa sonoridade suave e agradável [fazendo, em muito, lembrar certas paragens do Post-Rock] e o dito personagem vai ganhando alento e coragem para nos relatar a sua dor. A dor que o inquietava, abrupta, teimava em não lhe dar tréguas e o sujeito, amedrontado com o cenário, julgava-se num labirinto rodopiante onde solucionar a sua saída era penetrar desenfreadamente pela sua maior ferida. Angustiado pela cena, mirava uma luz no fundo do túnel. Envolto de um ambiente sonoro agradável e calmo, o personagem [que fala mais do que canta] serve-se de um lirismo simples e repete continuamente o verso «Dá-me a tua melhor faca/ para cortarmos isto em dois/ e amanhã esquecer», num repetir apetrechado de uma réstia de esperança. Basilarmente, estes versos servem de metáfora à dor vivenciada pelo personagem naquele momento. Com a ânsia de aliviar a dor, destila uma solução. Seria mais fácil partir a sua dor em duas fatias, uma dor contada é uma dor acalmada. Naquela efemeridade de tempo em que repete desalmadamente o verso acima referido, o personagem procura alguém para falar, um colete salva-vidas que lhe impeça que a bala lhe penetre o peito. Após cinco pedidos de ajuda sem qualquer tipo de resposta, o ambiente calmo e agradável desta Dá-me a tua melhor faca sofre uma volta de 180 graus e tempera-se, nela, uma agressividade letal. O personagem sucumbe à dor e silencia-se até ao término da música. A dor vence-o e a bala penetrou-se-lhe. É criada uma atmosfera absolutamente divinal, fazendo com que as nossas pernas tremam, com que a nossa cabeça palpite, com que o nosso coração queira explodir. Uma música esquizofrénica, numa mistura de emoções tremenda. Fabulosa.
4.       Partir para ficar – O lirismo desta música deriva da lendária FMI, do célebre José Mário Branco. Depois do quarteto ter pegado numa parte da composição lírica acima referida, foi-lhe conferida uma paisagem reinada pela incerteza e por um ambiente sombrio. Trata-se de um poderio instrumental que é banhado por quantidades extremas de emoção. Obrigando o ouvinte a imaginar-se numa paisagem inóspita, rude, escura, soturna, incerta e atroz, acaba-se por construir um momento singular e saboroso. Excelente momento musical.
5.       Estuque – Provavelmente escrita com influências de Cláudia Guerreiro [licenciada em escultura], Estuque acaba-se por revelar um dos grandes tesouros do registo. Arquitectada com uma letra sublime, a faixa número cinco deste LP aparece-nos estruturada de uma forma visivelmente pensada. Moldada com uma sonoridade agradável, é aqui que André Henriques mostra-nos, inicialmente, a sua capacidade vocal, fazendo soar a sua voz melhor do que nunca. Envolvendo os fãs num ambiente rústico, esconde-se o melhor para o fim e, repentinamente, somos invadidos por um solo extraterrestre. Invasor.
6.       O amor é não haver polícia – Esta faixa retrata, muito possivelmente, a música mais intensa, apaixonante e dolorosa que já ouvi. Inicialmente falando mais do que cantando, gera-se um ambiente intrigante e escuro, cheio de incógnitas, banhado por uma sonoridade rica em conteúdo. Demonstrando toda a sua genialidade instrumental, à medida que a canção vai fluindo, vai ganhando ritmo e as palavras vão sendo debitadas com maior rapidez. Envolta por um ritmo acelerado, a música vai ganhando novos contornos e vai-se transformando numa faixa mais pesada. Agarrando o ouvinte no verso «Eu queria tanto parar aqui», solta-se um berro apaixonante e doloroso, exponenciando a vertente esquizofrénica do álbum para outro patamar. Liricamente trata-se de uma das faixas mais elaboradas do álbum com momentos líricos como, por exemplo, «O mundo é grande e em todo o lado se vive. Diz-lhe para parar aqui, vivemos em caixas de fósforos. Não sopres» a sobressaírem. Estupendo.
7.       Quarto 210 – A meu ver, trata-se da faixa menos conseguida de todo o registo. Apesar da vertente lírica ser simples e deliciosa, não se acha a «explosão» instrumental que se deambula pela nossa mente quando ouvimos Linda Martini. Repleta de soturnidade, este Quarto 210 aparece-nos, instrumentalmente, simples e sem qualquer manobra de distorção, acabando por deixar água na boca aos fãs mais vibrantes da banda. Razoável.
8.       Amor Combate – A faixa número 8 deste LP assinala a música mais conhecida de toda a discografia dos Linda Martini. Recheada por uma componente lírica sublime, este «Amor Combate» aparece-nos condimentada por uma sonoridade exímia. Uma banda que, geralmente, não prima pelos dotes vocais do seu vocalista [André Henriques], acaba por elaborar uma faixa onde André demonstra ser provido de uma agradável capacidade vocal. Também nesta faixa a bateria, com Hélio Morais ao leme, aparece-nos louca [e isto é um elogio]! De facto, Hélio Morais consegue demonstrar, não só nesta faixa mas também ao longo de todo o álbum, que é o melhor baterista português da actualidade. Com uma criatividade extraordinária e com uma energia tremenda, pega nas baquetas e toca como se o amanhã estivesse por um fio. Um arrojo musical extremamente bem conseguido. Formidável.
9.       A Severa (ver de perto)A Severa é o momento alto do registo, o seu clímax. Uma música progressiva, suave, lenta, rápida, agressiva, calma, esquizofrénica. Unem-se todos os vocativos que se empregam na caracterização de Olhos de Mongol, e obtém-se a descrição de A Severa (ver de perto). Abre-se uma guerra num reino de distorções e quatro versos de pura poesia banhado por um mar de talento e obtém-se uma faixa perfeita. Frenética.

Pautado por uma sonoridade única, por um lirismo repleto da alma vazia e por uma atmosfera incrivelmente intensa, Olhos de Mongol acaba por se revelar um dos registos mais intensos e ricos que já ouvi. As suas letras, intrigantes, criam uma fusão fria e escura com a sua instrumentalidade absolutamente esquizofrénica, conferindo vida extraterrestre à sua musicalidade.

Levando o ouvinte a devanear-se por cada canto da sua complexa forma oval e a acelerar o seu ritmo cardíaco a cada palavra soletrada, os Linda Martini, alheios a compromissos, soam-nos maravilhosos num rio de sentimento e intensidade. Num passeio exterior à esfera real, somos constantemente penetrados pela musicalidade arrepiante do quarteto faminto. Um som único e que prima pela sua originalidade.

Arrebatadores, Hélio Morais, Pedro Geraldes, André Henriques e Cláudia Guerreiro, continuam a dar provas de que existe vida para além desta esfera.

Emanuel Graça

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