Olhos de Mongol trata-se de um disco
extremamente coeso e penetrante, onde a sonoridade ganha asas e não desce dos
céus e onde o lirismo, sempre simples e eficaz, funde-se com a complexidade
instrumental e penetra-se pela nossa cabeça sem querer retornar à esfera real.
Com músicas absolutamente divinais, o quarteto edificou,
indubitavelmente, um álbum [extremamente] rico em sonoridade, poesia e talento.
Olhos de Mongol obriga-nos a voltar
a Outubro de 2006 [um ano depois de a banda ter lançado o seu primeiro EP, intitulado Linda Martini], e é
constituído por 9 faixas com um total de, aproximadamente, 42 minutos. Tendo
como editora a Naked, o álbum conta
com:
1. Sinto a cabeça a cair – Esta é a música
mais simples de todo o LP,
funcionando como uma introdução ao mesmo. Apesar de toda a sua simplicidade, é
a partir do momento que escutamos esta faixa que começamos a ganhar consciência
de que este Olhos de Mongol deve ser escutado atentamente, pois trata-se de
um escape à esfera real. Começo razoável e intrigante.
2. Cronófago – A partir da segunda faixa do
registo são-nos introduzidas as poderosas guitarras com que o quarteto cessa a
sua fome. Edifica-se, ao longo do tema, uma muralha de distorção soberba que,
aliada a uma atmosfera potente, prende o ouvinte no verso «São carris que me prendem aqui/ à velha casa onde tudo é igual». Obrigando o ouvinte a deambular-se pelos
vocativos empregues, salta-nos o desejo de querer esmiuçar o mesmo. Nesse
«passeio» em torno do verso, ergue-se-nos a ideia dos conceitos de rotina,
homogenia e igualdade [conceitos, esses, que nos persistirão até ao fim do LP].
Potente.
3. Dá-me a tua
melhor faca – Esta música é,
simplesmente, demolidora. Nascendo no seio do poderio instrumental [com ênfase
para as guitarras], um personagem aparece-nos abafado pela dor e, por isso, mudo.
À medida que o quarteto se alimenta do seu som, a música, inicialmente ultra-violenta,
vai desaguando numa sonoridade suave e agradável [fazendo, em muito, lembrar certas
paragens do Post-Rock] e o dito
personagem vai ganhando alento e coragem para nos relatar a sua dor. A dor que
o inquietava, abrupta, teimava em não lhe dar tréguas e o sujeito, amedrontado
com o cenário, julgava-se num labirinto rodopiante onde solucionar a sua saída
era penetrar desenfreadamente pela sua maior ferida. Angustiado pela cena,
mirava uma luz no fundo do túnel. Envolto de um ambiente sonoro agradável e
calmo, o personagem [que fala mais do que canta] serve-se de um lirismo simples
e repete continuamente o verso «Dá-me a tua melhor faca/ para cortarmos isto em
dois/ e amanhã esquecer», num repetir apetrechado de uma réstia de esperança. Basilarmente,
estes versos servem de metáfora à dor vivenciada pelo personagem naquele
momento. Com a ânsia de aliviar a dor, destila uma solução. Seria mais fácil
partir a sua dor em duas fatias, uma dor contada é uma dor acalmada. Naquela
efemeridade de tempo em que repete desalmadamente o verso acima referido, o
personagem procura alguém para falar, um colete salva-vidas que lhe impeça que
a bala lhe penetre o peito. Após cinco pedidos de ajuda sem qualquer tipo de
resposta, o ambiente calmo e agradável desta Dá-me a tua melhor faca sofre uma volta de 180 graus e tempera-se,
nela, uma agressividade letal. O personagem sucumbe à dor e silencia-se até ao término
da música. A dor vence-o e a bala penetrou-se-lhe. É criada uma atmosfera
absolutamente divinal, fazendo com que as nossas pernas tremam, com que a nossa
cabeça palpite, com que o nosso coração queira explodir. Uma música
esquizofrénica, numa mistura de emoções tremenda. Fabulosa.
4. Partir para
ficar – O lirismo desta música deriva
da lendária FMI, do célebre José Mário Branco. Depois do quarteto
ter pegado numa parte da composição lírica acima referida, foi-lhe conferida
uma paisagem reinada pela incerteza e por um ambiente sombrio. Trata-se de um
poderio instrumental que é banhado por quantidades extremas de emoção.
Obrigando o ouvinte a imaginar-se numa paisagem inóspita, rude, escura,
soturna, incerta e atroz, acaba-se por construir um momento singular e
saboroso. Excelente momento musical.
5. Estuque – Provavelmente escrita com influências de Cláudia Guerreiro [licenciada em escultura], Estuque acaba-se por revelar um dos grandes tesouros do registo. Arquitectada
com uma letra sublime, a faixa número cinco deste LP aparece-nos estruturada de
uma forma visivelmente pensada. Moldada com uma sonoridade agradável, é aqui
que André Henriques mostra-nos,
inicialmente, a sua capacidade vocal, fazendo soar a sua voz melhor do que
nunca. Envolvendo os fãs num ambiente rústico, esconde-se o melhor para o fim
e, repentinamente, somos invadidos por um solo extraterrestre. Invasor.
6. O amor é não haver polícia – Esta faixa
retrata, muito possivelmente, a música mais intensa, apaixonante e dolorosa que
já ouvi. Inicialmente falando mais do que cantando, gera-se um ambiente
intrigante e escuro, cheio de incógnitas, banhado por uma sonoridade rica em
conteúdo. Demonstrando toda a sua genialidade instrumental, à medida que a
canção vai fluindo, vai ganhando ritmo e as palavras vão sendo debitadas com
maior rapidez. Envolta por um ritmo acelerado, a música vai ganhando novos
contornos e vai-se transformando numa faixa mais pesada. Agarrando o ouvinte no
verso «Eu queria tanto parar aqui», solta-se um berro apaixonante e doloroso,
exponenciando a vertente esquizofrénica do álbum para outro patamar.
Liricamente trata-se de uma das faixas mais elaboradas do álbum com momentos
líricos como, por exemplo, «O mundo é
grande e em todo o lado se vive. Diz-lhe para parar aqui, vivemos em caixas de fósforos. Não sopres» a sobressaírem. Estupendo.
7. Quarto 210 – A meu ver, trata-se da
faixa menos conseguida de todo o registo. Apesar da vertente lírica ser simples
e deliciosa, não se acha a «explosão» instrumental que se deambula pela nossa
mente quando ouvimos Linda Martini. Repleta de soturnidade,
este Quarto 210 aparece-nos,
instrumentalmente, simples e sem qualquer manobra de distorção, acabando por
deixar água na boca aos fãs mais vibrantes da banda. Razoável.
8. Amor Combate – A faixa número 8 deste LP
assinala a música mais conhecida de toda a discografia dos Linda Martini. Recheada
por uma componente lírica sublime, este «Amor Combate» aparece-nos condimentada
por uma sonoridade exímia. Uma banda que, geralmente, não prima pelos dotes
vocais do seu vocalista [André Henriques],
acaba por elaborar uma faixa onde André demonstra ser provido de uma agradável capacidade
vocal. Também nesta faixa a bateria, com Hélio
Morais ao leme, aparece-nos louca [e isto é um elogio]! De facto, Hélio Morais consegue demonstrar, não
só nesta faixa mas também ao longo de todo o álbum, que é o melhor baterista
português da actualidade. Com uma criatividade extraordinária e com uma energia
tremenda, pega nas baquetas e toca como se o amanhã estivesse por um fio. Um
arrojo musical extremamente bem conseguido. Formidável.
9. A Severa (ver de perto) – A Severa é o momento alto do registo, o
seu clímax. Uma música progressiva, suave, lenta, rápida, agressiva, calma,
esquizofrénica. Unem-se todos os vocativos que se empregam na caracterização de
Olhos
de Mongol, e obtém-se a descrição de A Severa (ver de perto). Abre-se uma guerra num reino de distorções
e quatro versos de pura poesia banhado por um mar de talento e obtém-se uma
faixa perfeita. Frenética.
Pautado por uma sonoridade única, por um lirismo repleto
da alma vazia e por uma atmosfera incrivelmente intensa, Olhos de Mongol acaba por
se revelar um dos registos mais intensos e ricos que já ouvi. As suas letras,
intrigantes, criam uma fusão fria e escura com a sua instrumentalidade
absolutamente esquizofrénica, conferindo vida extraterrestre à sua
musicalidade.
Levando o ouvinte a devanear-se por cada canto da sua complexa
forma oval e a acelerar o seu ritmo cardíaco a cada palavra soletrada, os Linda
Martini, alheios a compromissos, soam-nos maravilhosos num rio de
sentimento e intensidade. Num passeio exterior à esfera real, somos
constantemente penetrados pela musicalidade arrepiante do quarteto faminto. Um
som único e que prima pela sua originalidade.
Arrebatadores, Hélio
Morais, Pedro Geraldes, André Henriques e Cláudia Guerreiro, continuam a dar provas de que existe vida para
além desta esfera.
Emanuel Graça
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