sábado, 31 de março de 2012

Discos com Graça: Fetus in Fetu

Mais do que música, trata-se de filosofia musicada. Com o intento assente em espantar, através do som, a parvulez do consumismo e do materialismo a que o mundo está sujeito, a banda bracarense fantasia-se, sempre na língua de Camões, por uma sonoridade arrepiante e bastante característica.

Nascido em Barcelos, em inícios de 2004, e com várias formações ao longo da sua vida, o grupo nortenho é, actualmente, um quarteto: Afonso Dorido [guitarra, voz e melódica], Jimmy [guitarra, voz, xilofone, órgão vintage e kazoo], Mateus [baixo e piano] e Ketas [bateria]. Foi este grupo de quatro pessoas que, em 2009, se reuniu para elaborar o seu primeiro LPFetus in Fetu.

Tendo como génese criativa a temática/problemática da mutação [não no seu sentido biológico], o quarteto nortenho acabou por edificar um álbum extremamente coeso, perspicaz e estonteante. O disco foi lançado em 2010 e centra-se no activismo social da banda.

Fetus in Fetu é um dos álbuns mais completos e «coloridos» que já ouvi. Com uma instrumentalidade bastante apetrechada de magia, o registo foi condimentado com 8 faixas e um «conto sónico» divido em três episódios, tendo um total de, aproximadamente, 46 minutos. Tendo como editora a Compact Records, o álbum conta com:

1.        Prenúncio  – O registo tem início com um Prenúncio do mesmo. Daqui podemos concluir que o álbum irá desenrolar-se à volta desta faixa, uma faixa vincada pela posição política ousada da banda. Carregado por uma forte componente intervencionista, o lirismo desta faixa veste-se nos tímpanos sem querer desnudar deles. Versos como «O capitalismo suicidou-se/ não há mais motivos para o combater» tornam-se, imediatamente, uma das imagens de marca de todo o registo. Com uma sonoridade bastante fria, enfatizada por momentos de explosão fruto do som de guitarras ensopadas em efeitos e distorção, fundindo-se na perfeição com a mensagem que os barcelenses pretendem passar, o álbum começa de uma maneira bastante positiva. Excelente.

2.       Curta-Metragem (a Espera/ a Saída/ a Efectivação)    Curta-Metragem é um conto sónico. Um conto com uma espera, com uma saída e com uma efectivação.

Tendo início com a Espera, o ouvinte é envolvido numa paisagem instrumental simplesmente fabulosa. Banhado por um ritmo e uma escala de notas que prendem incessantemente o ouvinte, somos «obrigados» a debruçar-nos no verso «Eu estou à tua espera no sítio do costumo/ na mesa ao fundo» e convidados a conhecer a Saída.

A Saída presenteia-nos com um mundo dominado pelos líricos, versos como «Saem poetas por aí/ à procura de um sonho que eu não vi» retratam isso mesmo. Uma visão, uma vez mais, política que a banda assume. Uma faixa que é revestida por metáforas, que se faz robusta pela tremenda muralha de distorção que se vai edificando ao longo dos 2 minutos de puro mergulho num lago ondulado por ventos caóticos do Post-Rock.  Seguidamente a esta experiência ofegante somos invadidos pelas notas musicais tocadas no final de Saída, e chega-nos aos nossos ouvidos a Efectivação.

Este episódio da saga da Curta-Metragem segue a saga pregada na Saída e o seu corpo ergue-se desalmadamente a cada segundo sob uma atmosfera absolutamente monumental. São simplesmente dois minutos em que a paisagem sonora entra em transe, provocando uma sensação única. Desaguando em riffs que conferem um ambiente sónico esquizofrénico, este episódio aparece-nos desprovido de lirismo. As palavras caladas esmiuçam o sentimento, e assim foi. Fazendo levitar o ouvinte numa camada sonora inospitamente intensa (ainda mais do que aquela que nos é presenteada em Saída), dão-se asas grandes à preciosidade instrumental dos Indignu e o tal conto sónico desenlaça-se de uma maneira categoricamente explosiva e arrepiante. Momento musical fabuloso. E, a meu ver, o ponto alto do álbum.

3.         Ouvidos de bigorna  – A faixa número cinco do registo, terceira se se tiver em conta o tal «conto sónico», é, a par de Isaque, a música mais simples e suave de todo o álbum. Sem grande história na génese instrumental e sem nenhuma espécie de lirismo, esta é uma faixa desconexa de toda a temática envolvente de Fetus In Fetu mas é uma peça musical que acaba por encaixar, de forma indirecta, perfeitamente no puzzle. Um dos motes do grupo barcelense para este seu primeiro LP era a temática da mutação [não enquanto significado biológico], e esta faixa, juntamente com a já referida Isaque, acaba por ser uma mutação do próprio registo. É uma variação brusca, que se fez repentinamente. Passámos de uma atmosfera absolutamente intensa, asfixiante e ofegante patenteada no conto sónico Curta-Metragem para uma atmosfera reinada pela suavidade da simplicidade. Passámos do 80 para o 8 sem nos ser explanado nada, como uma mutação dos próprios Indignu que se mutaram e calaram toda a sua raiva e descrença por um mundo domado pelos princípios animalescos do materialismo sob um império fustigado pela parvulez do consumismo. Trata-se de uma interpretação muito subjectiva, mas é assim que eu vejo esta faixa. Momento musical razoável mas analisando o registo pelo seu todo, acaba por funcionar de uma maneira extremamente bela. Assinalável.

4.    Carruagem dos Magistrados  – Tendo início numa nascente sonora bastante apelativa, esta carruagem vai ganhando velocidade e descarrila-se, uma vez mais, no meio de um arco-íris musical reinado pelas tonalidades do Post-Rock. Sob um lirismo simples e eficaz, a mensagem da música descodifica-se pelos versos  «Julgas ser rei e afinal nem trono tens para ocupar». Com momentos vibrantes de distorção (constante na música dos barcelenses), mostra-se todo a mestria instrumental de que são dotados estes barcelenses. Fantástico.

5.        Rafaela Rafaela é um caso peculiar do registo. Inicialmente dando presságio de uma paisagem sonora bastante calma e agradável [fazendo lembrar-me, em parte, a sonoridade mais detalhada e suave dos Mogwai], a composição musical vai-se desvanecendo em pequenos momentos de raiva até ao momento em que esta explode e é conferido um lado inóspito, vazio, gritante, e ofegante. Sob o alento de Jimmy e Afonso Dorido, a bateria de Ketas acaba por ser uma preciosidade ao longo desta faixa. Muito bom!

6.    Duzentas Promessas Por Um Mundo Melhor - Na faixa mais célebre do registo, Duzentas Promessas Por Um Mundo Melhor, os Indignu contam com a colaboração do poeta Valter Hugo Mãe e de Nuno Rancho. É sob o estro do conceituado poeta nortenho que os Indignu exponenciam, ainda mais, a sua música para outro patamar. Com Nuno Rancho na voz dá-se alento ao poderio instrumental dos barcelenses e arquitecta-se um dos grandes momentos do álbum. Simplesmente arrasador. Dá-se uma fusão crua e sem piedade entre a vertente instrumental, poética e vocal e condimenta-se uma sonoridade exímia. Soberbo.

7.         Choro de Saudade  – Mais uma vez sem vertente lírica, Choro de Saudade acaba-se por revelar um dos pontos menos bons do registo. Não que seja mau, pois está longe disso; no entanto, não se assume eximiamente com as restantes faixas de Fetus In Fetu. Oscilando entre partes mais suaves e partes mais agrestes, trata-se de uma música que é mergulhada num oceano de distorção. Razoável.

8.       Isaque  – A minha opinião sobre Isaque é sensivelmente a mesma opinião que tenho sobre Ouvidos de Bigorna. De realçar é que esta «mutação» ocorre antes de Suicida Oração, o término do registo.

9.          Suicida Oração  – O álbum termina com uma oração suicida. Agastados de edificarem um manifesto contra os rudimentos vigorantes de um mundo podre reinado pela idiotice dos princípios que recaem sobre o materialismo, sucumbem à derrota e dão-se por vencidos. Sob uma maré inóspita, deixam-se erodir no consumismo ao som de uma sonoridade que lhe é típica, a fazer jus a todo o registo. Lirismos simples apoiados na sua grandiosidade instrumental, uma combinação que, embora pouco complexa, combina maravilhosamente bem. Desenlace potentíssimo.

Envolvendo os ouvintes num arco-íris musical, onde as tonalidades do Post-Rock ganham vida e cor face a tudo o resto, cantam e tocam filosofias de uma maneira sublime e elucidando o ouvinte para o seu potencial gritante ao longo de todo este Fetus in fetu.

Abscônditos da ribalta por demasiado tempo, é agora que os Indingu se assumem como uma banda de destaque no panorama do Alternative Rock português. Radicados numa filosofia musicada que flui naturalmente, sem ser pré-fabricada, sem ser arquitectada, afirmam que «Indignu é todo aquele mundo que nos sufoca e corta as asas». Mas quem levanta voo acabam por ser os ouvintes, invadidos pela alma assombrosa com que o quarteto cessa a sua fome e o seu vomitar idealista. Agora, depois do lançamento da relíquia de Fetus in fetu, aguarda-se ansiosamente pelo seu irmão.

Este feto não morrerá, seguramente, sozinho.

Emanuel Graça

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