Mais do que música, trata-se de filosofia musicada. Com o
intento assente em espantar, através do som, a parvulez do consumismo e do
materialismo a que o mundo está sujeito, a banda bracarense fantasia-se, sempre
na língua de Camões, por uma sonoridade arrepiante e bastante característica.
Nascido em Barcelos, em inícios de 2004, e com várias
formações ao longo da sua vida, o grupo nortenho é, actualmente, um
quarteto: Afonso Dorido [guitarra,
voz e melódica], Jimmy [guitarra,
voz, xilofone, órgão vintage e kazoo], Mateus [baixo e piano] e Ketas [bateria]. Foi este grupo de quatro pessoas que, em
2009, se reuniu para elaborar o seu primeiro LP, Fetus in Fetu.
Tendo como génese criativa a temática/problemática da
mutação [não no seu sentido biológico], o quarteto nortenho acabou por edificar
um álbum extremamente coeso, perspicaz e estonteante. O disco foi lançado em
2010 e centra-se no activismo social da banda.
Fetus in Fetu é um dos
álbuns mais completos e «coloridos» que já ouvi. Com uma instrumentalidade
bastante apetrechada de magia, o registo foi condimentado com 8 faixas e um
«conto sónico» divido em três episódios, tendo um total de, aproximadamente, 46
minutos. Tendo como editora a Compact
Records, o álbum conta com:
1. Prenúncio – O registo tem início com um Prenúncio do mesmo. Daqui podemos
concluir que o álbum irá desenrolar-se à volta desta faixa, uma faixa vincada
pela posição política ousada da banda. Carregado por uma forte componente
intervencionista, o lirismo desta faixa veste-se nos tímpanos sem querer
desnudar deles. Versos como «O
capitalismo suicidou-se/ não há mais motivos para o combater» tornam-se,
imediatamente, uma das imagens de marca de todo o registo. Com uma sonoridade
bastante fria, enfatizada por momentos de explosão fruto do som de guitarras
ensopadas em efeitos e distorção, fundindo-se na perfeição com a mensagem que
os barcelenses pretendem passar, o álbum começa de uma maneira bastante
positiva. Excelente.
2. Curta-Metragem
(a Espera/ a Saída/ a Efectivação) – Curta-Metragem é
um conto sónico. Um conto com uma espera, com uma saída e com uma efectivação.
Tendo início com a Espera, o ouvinte é envolvido numa paisagem
instrumental simplesmente fabulosa. Banhado por um ritmo e uma escala de notas
que prendem incessantemente o ouvinte, somos «obrigados» a debruçar-nos no verso «Eu
estou à tua espera no sítio do costumo/ na mesa ao fundo» e convidados a conhecer a Saída.
A Saída presenteia-nos
com um mundo dominado pelos líricos, versos como «Saem poetas por aí/ à procura de um sonho que eu não vi» retratam isso mesmo. Uma visão, uma
vez mais, política que a banda assume. Uma faixa que é revestida por metáforas,
que se faz robusta pela tremenda muralha de distorção que se vai edificando ao
longo dos 2 minutos de puro mergulho num lago ondulado por ventos caóticos
do Post-Rock. Seguidamente
a esta experiência ofegante somos invadidos pelas notas musicais tocadas no final
de Saída, e chega-nos aos nossos ouvidos a Efectivação.
Este episódio da saga da Curta-Metragem segue a saga pregada
na Saída e o seu corpo
ergue-se desalmadamente a cada segundo sob uma atmosfera absolutamente
monumental. São simplesmente dois minutos em que a paisagem sonora entra em
transe, provocando uma sensação única. Desaguando em riffs que conferem um ambiente sónico
esquizofrénico, este episódio aparece-nos desprovido de lirismo. As palavras
caladas esmiuçam o sentimento, e assim foi. Fazendo levitar o ouvinte numa
camada sonora inospitamente intensa (ainda mais do que aquela que nos é
presenteada em Saída), dão-se
asas grandes à preciosidade instrumental dos Indignu e o tal
conto sónico desenlaça-se de uma maneira categoricamente explosiva e
arrepiante. Momento musical fabuloso. E, a meu ver, o ponto alto do álbum.
3. Ouvidos de
bigorna – A faixa número
cinco do registo, terceira se se tiver em conta o tal «conto sónico», é, a par
de Isaque, a música mais simples e suave de todo o álbum. Sem grande
história na génese instrumental e sem nenhuma espécie de lirismo, esta é uma
faixa desconexa de toda a temática envolvente de Fetus In Fetu mas é
uma peça musical que acaba por encaixar, de forma indirecta, perfeitamente no
puzzle. Um dos motes do grupo barcelense para este seu primeiro LP era a temática da mutação [não
enquanto significado biológico], e esta faixa, juntamente com a já
referida Isaque, acaba por ser uma mutação do próprio registo. É uma
variação brusca, que se fez repentinamente. Passámos de uma atmosfera
absolutamente intensa, asfixiante e ofegante patenteada no conto sónico Curta-Metragem para uma atmosfera
reinada pela suavidade da simplicidade. Passámos do 80 para o 8 sem nos ser
explanado nada, como uma mutação dos próprios Indignu que se
mutaram e calaram toda a sua raiva e descrença por um mundo domado pelos
princípios animalescos do materialismo sob um império fustigado pela parvulez
do consumismo. Trata-se de uma interpretação muito subjectiva, mas é assim que
eu vejo esta faixa. Momento musical razoável mas analisando o registo pelo seu
todo, acaba por funcionar de uma maneira extremamente bela. Assinalável.
4. Carruagem
dos Magistrados – Tendo
início numa nascente sonora bastante apelativa, esta carruagem vai ganhando
velocidade e descarrila-se, uma vez mais, no meio de um arco-íris musical
reinado pelas tonalidades do Post-Rock. Sob um lirismo simples e
eficaz, a mensagem da música descodifica-se pelos versos «Julgas
ser rei e afinal nem trono tens para ocupar». Com momentos vibrantes de
distorção (constante na música dos barcelenses), mostra-se todo a mestria
instrumental de que são dotados estes barcelenses. Fantástico.
5. Rafaela – Rafaela é um
caso peculiar do registo. Inicialmente dando presságio de uma paisagem sonora
bastante calma e agradável [fazendo lembrar-me, em parte, a sonoridade mais
detalhada e suave dos Mogwai], a composição musical vai-se
desvanecendo em pequenos momentos de raiva até ao momento em que esta explode e
é conferido um lado inóspito, vazio, gritante, e ofegante. Sob o alento de Jimmy e Afonso Dorido, a bateria de Ketas acaba
por ser uma preciosidade ao longo desta faixa. Muito bom!
6. Duzentas
Promessas Por Um Mundo Melhor -
Na faixa mais célebre do registo, Duzentas Promessas Por Um Mundo
Melhor, os Indignu contam com a colaboração do
poeta Valter Hugo Mãe e
de Nuno Rancho. É sob o
estro do conceituado poeta nortenho que os Indignu exponenciam,
ainda mais, a sua música para outro patamar. Com Nuno Rancho na voz dá-se alento ao poderio instrumental dos
barcelenses e arquitecta-se um dos grandes momentos do álbum. Simplesmente
arrasador. Dá-se uma fusão crua e sem piedade entre a vertente instrumental,
poética e vocal e condimenta-se uma sonoridade exímia. Soberbo.
7. Choro de Saudade
– Mais uma vez sem vertente lírica, Choro de Saudade acaba-se
por revelar um dos pontos menos bons do registo. Não que seja mau, pois está longe
disso; no entanto, não se assume eximiamente com as restantes faixas de Fetus
In Fetu. Oscilando entre partes mais suaves e partes mais agrestes,
trata-se de uma música que é mergulhada num oceano de distorção. Razoável.
8. Isaque
– A minha opinião sobre Isaque é sensivelmente a mesma opinião que
tenho sobre Ouvidos de Bigorna. De realçar é que esta «mutação» ocorre
antes de Suicida Oração, o
término do registo.
9.
Suicida Oração – O álbum termina com uma oração
suicida. Agastados de edificarem um manifesto contra os rudimentos vigorantes
de um mundo podre reinado pela idiotice dos princípios que recaem sobre o
materialismo, sucumbem à derrota e dão-se por vencidos. Sob uma maré inóspita,
deixam-se erodir no consumismo ao som de uma sonoridade que lhe é típica, a
fazer jus a todo o registo. Lirismos simples apoiados na sua grandiosidade
instrumental, uma combinação que, embora pouco complexa, combina
maravilhosamente bem. Desenlace potentíssimo.
Envolvendo os ouvintes num arco-íris musical, onde as
tonalidades do Post-Rock ganham
vida e cor face a tudo o resto, cantam e tocam filosofias de uma maneira
sublime e elucidando o ouvinte para o seu potencial gritante ao longo de todo
este Fetus in fetu.
Abscônditos da ribalta por demasiado tempo, é agora que
os Indingu se assumem como uma banda de destaque no panorama
do Alternative Rock português.
Radicados numa filosofia musicada que flui naturalmente, sem ser pré-fabricada,
sem ser arquitectada, afirmam que «Indignu é todo aquele mundo que nos sufoca e
corta as asas». Mas quem levanta voo acabam por ser os ouvintes, invadidos pela
alma assombrosa com que o quarteto cessa a sua fome e o seu vomitar idealista.
Agora, depois do lançamento da relíquia de Fetus in fetu, aguarda-se
ansiosamente pelo seu irmão.
Este feto não morrerá, seguramente, sozinho.
Emanuel Graça
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