quinta-feira, 15 de março de 2012

Discos com Graça: Unknown Pleasures

A música dos Joy Division assemelha-se a um valente soco num estômago vazio de tão penetrante que consegue ser.

Corria o ano de 1979 e alastrava-se, pelas rotinas britânicas, o tédio pela vida. No quotidiano, vivia-se uma monotonia tal que fazia imergir a vontade antiética de tudo mudar, assim, num ápice. Enquanto bandas como os Sex Pistols decidiam dissipar todo o seu tédio e raiva através de uma música mais agressiva com saliências ousadas da rebeldia característica do movimento Punk, como foi patenteado no lendário Never Mind The Bollocks, Here’s The Sex Pistols, o quarteto proveniente de Manchester decidiu-se por despejar toda a sua angústia através de uma música mais calma, com uma batida mais suave e emocional, alicerçada na importância que a linha de baixo e a bateria adquiriam face à tradicional guitarra. Característica que ajudaram a definir o movimento Post-Punk.

Num álbum genial, a banda encabeçada pelo lendário génio de Ian Curtis edificou uma musicalidade única: Stephen Morris [baterista] ia repetindo, quase sempre, a mesma batida ao longo de cada faixa. Bernard Sumner [guitarrista] cedia à timidez, propositada, e permitia que Peter Hook [baixista] ganhasse o protagonismo no que toca à génese instrumental, fazendo com que a linha-de-baixo soasse mais [e melhor] do que nunca. Já a voz, entregue a Ian Curtis, que se perdia no querer contínuo de se encontrar a si mesmo e de descobrir o significado da sua ignóbil existência, essa soa-nos, quase sempre, triste e depressiva.

De facto, a musicalidade dos Joy Division era bastante simples, assim como quase toda a música que nasceu do seio do movimento Punk, mas é um som que, à primeira vista, nos pode soar estranho. Efectivamente, este é um daqueles casos onde se pode aplicar o dito «Primeiro estranha-se, depois entranha-se».

A atmosfera que envolve Unknown Pleasures é uma das coisas mais intrigantes e belas que já ouvi. Recuando a Junho de 1979, o registo foi arquitectado com 10 faixas, tendo um total de 39 minutos e 24 segundos. Tendo como editora a Factory Records, o álbum conta com:

1.       Disorder – O registo tem início com Disorder, uma grande canção, se bem que não muito elaborada. Iniciando-se na bateria, sempre com uma batida simples, a música vai desaguando nos riffs melódicos e frios por parte de Peter Hook e Bernard Sumner. O som aparece-nos envolto num ambiente descontraído, decorado por uma paisagem que nos soa alegre até que o vocalista, sofredor de musicofilia, começa a cantar. O LP tem início com o verso «I’ve been waiting for a guide to come and take me by the hand/ could these sensations make me feel the pleasures of a normal man?». Este tema trata-se, garantidamente e na minha opinião, de um dos mais «acessíveis» da discografia dos Joy Division, e é possível relacionar o nome do registo com o verso acima referido, pois trata-se de prazeres desconhecidos para Ian. A partir deste ponto, podemos concluir uma série de coisas acerca daquilo que se pode esperar deste LP: o álbum soará, seguramente, a um aligeirado grau de egocentrismo por parte da pessoa de Curtis. A vida do cantor encontra-se numa desordem tal que este, apesar de ser uma pessoa normal, não consegue sentir os prazeres que alguém «normal» consegue sentir. Por outras palavras, a vida de Ian devaneava-se por uma equação cuja incógnita - o prazer - teimava em manter-se ábdita. Excelente início.

2.       Day of the Lords – A faixa número 2 do registo regista um ritmo menos acelerado do que a primeira, Disorder, mas mais pesado. Uma música hipnotizante, agressiva, depressiva e obscura fazendo-me lembrar, em parte, Black Sabath. O momento central da faixa, o verso «Where will it end?» é acompanhado por um sintetizador, o que confere uma paisagem abscôndita pela incerteza oca de Ian em querer exumar todo o que existe para ser desenterrado. Um dos grandes momentos do álbum, fenomenal.

3.       Candidate – Enfatizando a importância da linha de baixo e da bateria, a guitarra, talvez devido à peculiar produção de Hannett, soa-nos muito distante ao longo de toda a faixa. Focando-me na parte instrumental, acho muito positiva nesta música a ligação baixo-voz, que combina extremamente bem com o conteúdo da vertente lírica que compõe a música. Com um lirismo sempre sublime, Ian Curtis relata-nos as artimanhas fracassadas de um político frustrado. Razoável.

4.       Insight – Na minha opinião, uma das músicas mais complexas que o quarteto nos ofereceu. Não é fácil estar a falar deste tema, pois é rico em pormenores. Semelhante a 24 Hours, decorada com um ambiente sombrio, fruto da voz de Ian, sempre intrigante e misteriosa, esta faixa vai ao encontro instrumental, a meu ver, de Disorder, sofrendo um pequeno abrandamento em termos de rapidez [algo evidente na bateria de Morris]. O momento mais «estranho» da música aparece-nos quando somos «atacados» por um ruído futurista de instrumentos electrónicos, numa invasão cujo contexto eu não consigo entender muito bem. Contudo, acho que se trata de um belo momento musical.

5.       New Dawn Fades – Muito possivelmente a minha música favorita de todo o álbum, New Dawn Fades é uma faixa onde sobressai o carácter depressivo, melancólico, triste, genial e único do vocalista da banda. Acerbado por uma certa abulia, canta com acérrimo o possível excídio do seu «eu». Com um estro inigualável, recorre à sentença da sua voz e exsurge-se para abluir a sua alma. Com uma instrumentalidade exímia, especialmente quando a voz de Ian se intensifica mais [provando que não é preciso ter grandes dotes vocais para se ser um grande cantor], a faixa aparece imersa de emoção num oceano de encantos e desencantos. Divinal.

6.       She’s Lost Control – Condimentado de uma maneira peculiar, She’s Lost Control é a música mais célebre de todo o registo. Com Peter Hook a brilhar, devido à linha de baixo que, uma vez mais, está absolutamente arrasadora, Ian Curtis conta-nos a história de uma rapariga que ele conhecia que sofria de ataques de epilepsia, tal como ele. Quando Ian tinha um ataque, sentia que aquelas pequenas fracções de tempo podiam ditar o seu fim, podiam ditar com que ele perdesse o controlo sobre as coisas. Eram como fenómenos sobrenaturais, os quais o homem comum e mortal não pode estropiar. Era algo para além dele, assim o entedia, Ian. Versos como «Confusion in her heys that says it all/ she’s lost control» são exemplo disso. Clássico genial.

7.       Shadowplay – Outra relíquia do registo é esta Shadowplay. Iniciando-se de uma maneira simples e calma, acaba por sofrer uma inversão abrupta, aos 30 segundos, e transforma-se num vomitar de agressividade abstruso estropiado pelo riff enérgico de Bernard. A cada verso que é decifrado existe sempre uma interjeição por parte do guitarrista, o que acaba por funcionar muitíssimo bem. Acabando por acatar uma funcionalidade meramente atmosférica, a guitarra vê aqui o seu ponto alto em relação a todo o álbum. Nesta faixa é visível uma face mais Punk dos Joy Division: Arrojo musical simples, agressivo, fúria pessoal. Muitíssimo bom.

8.       Wilderness – A música mais sombria e inóspita de todo o álbum. Cercada pelo mistério e por uma linha de baixo sempre agradável, a banda leva o ouvinte a nidificar-se no verso «What did you see there? /The power of glory and sin,/ What did you see there?/ The blood of Christ on their skin.». Beleza intrigante.

9.       Interzone  Interzone acaba por se revelar o expoente de maior grau da face Punk dos Joy Division. Uma música rápida, conferida por uma paisagem alegre [com excepção para o lirismo, que é regular ao longo de todo o registo: sempre triste, penetrante e sublimemente genial]. Nesta faixa é constatável o aparecimento nos vocais de Peter Hook. Bom momento musical.

10.   I Remember Nothing – Uma das minhas músicas favoritas de toda a discografia do quarteto de Manchester acaba por ser a peça que serve de desenlace ao Unknown Pleasures. Uma música com um ambiente muito dark, intrigante e assustador. A voz de Ian aparece-nos melhor do que nunca, tornando visível o abscôndito, abecedando cada letra que canta, esquivando-se do desprazer naqueles escassos 6 minutos, efeminando a dor que havia em si, dando vida ao seu ego ábio. Inicialmente lenta [como quase sempre até aqui], a música vai acelerando e ganhando ritmo. Nesta música, devido à produção, a voz de Ian parece soar mais forte que tudo, penetrando no ouvido do ouvinte a cada palavra cuspida. Penetrante e fantástico final.

O som do quarteto produziu uma ruptura com os padrões musicais da época e até hoje influencia fortemente bandas que produzem música alternativa. O baixo sempre predominante na estrutura das músicas, os ruídos pausados das guitarras, a introdução de elementos sintéticos na textura instrumental e a voz singular de baixo-barítono inovaram tanto que o que se seguiu foi fortemente influenciado por Joy Division.

Pautado por um lirismo soberbo, por uma sonoridade bastante característica e por uma atmosfera genialmente sombria, Unknown Pleasures é um dos álbuns da minha vida. Aliás, Unknown Pleasures não é meramente um álbum, é uma história. É parte da história de Ian Curtis, o cantor, poeta e filósofo que encarava a vida de uma maneira única, não se sujeitando à verdade vista pelos olhos dos outros e batalhando incessantemente por distorcer essa insensível verdade. É parte da história daquela marioneta demente que fervia de emoção enquanto cantava. Ian esmiuçava-se, literalmente, na busca de encontrar a verdadeira essência do seu «eu» através da música. Conseguia-o com a ajuda dos seus três amigos Peter Hook, Stephen Morris e Bernard Sumner.

Obrigando o ouvinte a deambular-se por recintos sombrios, incertos e intrigantes [recintos, esses furto, em parte, da produção encabeçada por Martin Hannett], Unknown Pleasures trata-se de um disco extremamente penetrante, triste, persuasivo e belo.

Sem mais retórica, rendam-se aos prazeres desconhecidos.

Emanuel Graça

1 comentário:

  1. quando ouço Days of the Lords entendo porque Ian se matou: a vida é infinitamente patética...

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